Além de manipuladora sexual, a Wolbachia brilha como contrabandista de genes |
Wolbachia: guarde o nome. Esse gênero de bactérias constitui uma dessas esquisitices da natureza para encher páginas da melhor divulgação científica, de Carl Zimmer a Steve Jones. Além de exímia manipuladora sexual, agora se descobre que a danada também brilha como contrabandista de genes.
Antes, um pouco da irresistível história natural da Wolbachia. O micróbio é um dos parasitas mais comuns do mundo. Infecta sobretudo insetos, talvez um quinto das milhões de espécies existentes, mas também outros artrópodes (como aranhas) e vermes (como o causador da elefantíase).
A bactéria é esperta. Hospeda-se nos óvulos, o que lhe garante passagem para a geração seguinte. Não contente, consegue alterar -não pergunte como- o comportamento reprodutivo das vítimas, com prejuízo para os machos da prole. Menos machos, mais fêmeas -e mais Wolbachia.
Em alguns casos, morrem todos os filhotes machos infectados. Noutros, eles são feminilizados, transformando-se em pseudofêmeas inférteis.
Noutros ainda, a presença do parasita induz a partenogênese, reprodução que dispensa fertilização pelo macho.
Por fim, a presença da Wolbachia pode tornar incompatíveis alguns machos e fêmeas, o que leva à separação da espécie em duas.
O periódico "Science" publicou na internet (www.sciencexpress.org), anteontem, uma nova esquisitice do microrganismo. A equipe de John Werren, da Universidade de Rochester (EUA), que conta com o brasileiro Deodoro Gonçalves de Oliveira, descobriu que a bactéria não se incorpora só fisicamente aos óvulos dos bichos, mas também por meio de seu DNA.
Partindo da evidência de que genes da Wolbachia foram incorporados pelo genoma de alguns hospedeiros, o grupo começou a peneirar esse acervo de genes de várias espécies. A transferência lateral de grandes trechos funcionais de DNA é comum entre bactérias, mas é rara de um desses micróbios simples para organismos multicelulares complexos como os insetos.
O grupo verificou não só a transferência de DNA da Wolbachia para oito espécies como, num dos casos, de seu genoma virtualmente completo (mais de um bilhão de "letras"). A vítima, no caso, é a mosca-da-fruta Drosophila ananassae, originária da Índia.
Ao que parece, o excesso de intimidade da Drosophila ananassae com a Wolbachia levou a primeira a assimilar quase todo o genoma do parasita em seu próprio genoma. Num comunicado à imprensa da Universidade de Rochester, Werren diz não acreditar que a bactéria tenha invadido a privacidade genética da mosca "intencionalmente", mas como resultado do mau funcionamento dos mecanismos de reparo de DNA do próprio inseto.
Apesar disso, parece-lhe pouco provável que o genoma bacteriano incorporado não traga alguma vantagem para a sobrevivência da mosca.
Werren especula que pode ter detectado um processo similar ao que levou, no passado remoto, ao surgimento da organela mitocôndria (responsável hoje pelo fornecimento de energia em todas as nossas células). Antigas bactérias, as mitocôndrias preservam ainda um pouco desse DNA ancestral, mas a maior parte dele já teria sido "contrabandeado" para o genoma dos primeiros organismos incautos que as hospedaram.
"Dentro de cem milhões de anos, todo mundo poderá ter uma organela-wolbachia", diz Werren. "Menos nós. Já teremos desaparecido muito antes, mas a Wolbachia ainda estará por aí."
MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Clones Demais" e "O Resgate das Cobaias", da série de ficção infanto-juvenil Ciência em Dia (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net ). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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