Rogério Cezar de Cerqueira Leite
Folha de S.Paulo, 7.8.08
DOIS AMIGOS, Alexei Fedorov Ivanovitch e Bob, decidiram resolver suas diferenças por meio de uma corrida de bicicletas.
Cada um a seu jeito foi encomendar uma máquina. Bob firmou um contrato com o fabricante estabelecendo o nível de desempenho, características e datas limites. Ivanovitch, devido talvez a suas inclinações ideológicas, impôs certas condições adicionais deveria haver concursos para os trabalhadores, estabilidade, isonomia salarial, licitação etc.
A corrida teve de ser postergada várias vezes a pedido de Ivanovitch e, quando a sua geringonça ficou pronta, o dinheiro não havia sido suficiente nem sequer para comprar o selim.
"Ora", justificou-se o fabricante, "não é possível cumprir metas e ter qualidade quando há interferência externa no processo de produção." Ivanovitch justifica-se "O dinheiro é meu, deve ser gasto como determino".
Pois bem, por falta de competitividade, o fabricante da bicicleta socialista foi à falência e seus funcionários ficaram sem emprego. Essa história pode parecer pueril, inverossímil, mesmo. No entanto, é exatamente o que está acontecendo neste momento com algumas das mais bem-sucedidas instituições de pesquisa do país.
Devido a uma série de acidentes, o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, criado no início do governo Sarney pelo então ministro da Ciência e Tecnologia, Renato Archer, não fora institucionalizado até início do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso.
Seu inquestionável sucesso nacional e internacional foi adequadamente atribuído pelo então ministro da Ciência e Tecnologia, Bresser-Pereira, à informalidade institucional. Concebeu-se então uma fórmula inovadora. Uma instituição privada criada pela sociedade civil negocia com o governo um contrato de gestão, contrato este que estabelece objetivos, metas (incluídos prazos) etc. A instituição, denominada "organização social" (OS), se encarrega da gestão do laboratório, um patrimônio público, sem as desvantagens dos entraves burocráticos tradicionais, já que é uma instituição privada.
Fórmulas semelhantes vêm sendo adotadas mundo afora para diferentes setores de pesquisa e outros com inquestionável sucesso.
Por outro lado, gerência inadequada, objetivos deturpados, metas não atingidas, critério exclusivo do contratante ou outro motivo qualquer permitem ao governo romper o contrato unilateralmente, o que, em princípio, pode levar ao fechamento da organização social. Com isso, naturalmente se atinge a muito almejada gestão por resultados.
Mas eis que o incansável Ivanovitch reclama "E os interesses dos trabalhadores". Ora, eles estão na CLT e nas demais legislações do país, exatamente como acontece com todos os empregados do setor privado. O interesse público, quanto aos aspectos do setor penal e civil, também é defendido como em todas as demais instituições da sociedade civil.
Assim, foi proposta a criação das organizações sociais em 6/11/97 pelo Executivo e transformada em lei pelo Congresso Nacional em 15/5/98.
Contestada a constitucionalidade das organizações sociais por dois partidos importantes, PT e PDT, por quase unanimidade do Supremo Tribunal Federal foi confirmada sua pertinência constitucional, sua legitimidade, pela rejeição da liminar.
Não obstante, por incrível que pareça, o Tribunal de Contas da União, órgão do Congresso Nacional, em direto confronto com o mesmo Congresso Nacional que emitiu a legislação que rege as organizações sociais e em flagrante desobediência à decisão do Supremo, que confirma a legalidade das OSs, vem exigindo a adoção de práticas características da administração direta, que, a prosseguir nesse ritmo, acabarão por estatizar completamente as OSs.
Será possível entender esse fenômeno Os três Poderes -o Executivo, o Legislativo e o Judiciário- confirmam a legalidade das OSs, e o imenso sucesso científico da sua fórmula legitima sua existência, mas forças reacionárias liquumlidam tais instituições.
Uma nação não pode existir sem uma sólida burocracia. Todavia, ela só será construtiva enquanto mantida em seus devidos limites legais, pois seus impulsos expansionistas são inerentes à sua natureza.
No momento, viceja essa vocação para o estatismo regressivo porque encontra terreno fértil no esquerdismo obtuso e arcaizante e na mediocridade que a ele se simbiotizou.
Cabe agora ao Congresso Nacional e à Justiça confirmar a fórmula organização social ou eliminá-la. Mas que o façam como um ato de vontade política, e não como um acontecimento prosaico, sub-repticiamente imposto por forças ilegítimas, extemporâneas.
ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE , 77, físico, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), presidente do Conselho de Administração da ABTLuS (Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron) e membro do Conselho Editorial da Folha.
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