segunda-feira, 9 de junho de 2008

Berimbaus, boicotes e avaliação

NAOMAR DE ALMEIDA FILHO


É inaceitável que um jovem de classe privilegiada seja incapaz de retribuir, de modo decente, para uma justa avaliação institucional
FSP

NOSSA FACULDADE de Medicina, no ano do seu bicentenário, fracassou na avaliação do Enade. O coordenador do curso, ao explicar o fiasco, culpou as cotas e a inferioridade intelectual dos estudantes. Para ilustrar seu argumento, alegou que o berimbau, símbolo da musicalidade baiana, tem só uma corda, o que comprovaria a suposta deficiência cognitiva dos baianos.
Considerei suas declarações discriminatórias, eivadas de insensibilidade cultural e ignorância antropológica. Infelizmente, o episódio contribuiu para ofuscar um tema chave para o futuro da universidade brasileira: avaliação.
Agora que a notícia saiu do foco da mídia, podemos refletir melhor sobre o caso. De pronto, descarto a hipótese de "contaminação pelas cotas". Mesmo porque a turma reprovada entrara na universidade em 2001, quatro anos antes do advento do programa de ações afirmativas.
Também não se vê falta de recursos docentes e pedagógicos. O curso de medicina da UFBA tem três alunos por docente e conta com 609 leitos em hospitais de ensino. Harvard, a melhor escola do mundo, não exibe tão vantajosa relação aluno/professor; nem a medicina da USP, com o complexo do Hospital das Clínicas, oferece possibilidades de prática docente-assistencial em tal proporção. Seria o caso, portanto, de gestão acadêmica incompetente.
Entretanto, há evidências de que essa reprovação no Enade se deve, em grande parte, a boicote. Vários órgãos de imprensa publicaram depoimentos de formandos que, protegidos pelo anonimato, reconheceram-se apressados em viajar para submeter-se a exames de seleção para residência médica ou concursos públicos.
Recuperamos a lista dos sorteados para o exame. São 86 graduados. Todos obtiveram excelentes resultados nos processos seletivos a que se submeteram. Não lhes faltam talento e capacidade: o coeficiente de rendimento médio do grupo é 85%.
A atitude deles revela egoísmo, descompromisso e deslealdade para com a instituição que os acolheu. Antes das cotas, por causa da perversidade do vestibular, o curso de medicina da UFBA era quase monopólio da elite. É inaceitável que um jovem oriundo de classes privilegiadas, ao receber formação profissional em carreira de alta valorização social e financeira -sem pagar um centavo, numa instituição pública mantida com o dinheiro dos contribuintes-, seja incapaz de retribuir, de modo decente, para uma justa avaliação institucional.
Além disso, o diretório acadêmico admite ter fomentado boicote à prova, atendendo a uma diretiva da sua entidade nacional. Essa possibilidade me revolta profundamente não só como gestor público, mas sobretudo enquanto cidadão que tem uma história de luta política, no movimento estudantil e nos movimentos da renovação médica e da reforma sanitária.
Todos nós que arriscamos as carreiras (alguns, a vida) atuando clandestinamente para reativar diretórios estudantis declarados proscritos pelo regime militar -e todos aqueles que, geração após geração, mantiveram acesa a chama do movimento estudantil na universidade- nunca imaginamos ver tal situação: agremiações estudantis aparelhadas para boicotar processos avaliativos públicos, contribuindo para depreciar o legado político da universidade brasileira.
Sinto-me frustrado como educador. Sei que não há inocentes. Os sabotadores são pessoas adultas e devem saber os danos que causaram a si próprios e à instituição.
Mas não acredito ser justo identificá-los como os únicos culpados. Também culpados são gestores e docentes, cúmplices de sabotagem da avaliação da universidade pública, que permitem que nossos cursos formem sujeitos que, mesmo tecnicamente competentes, mostram-se individualistas, alienados, arrogantes, capazes do mais vil desapreço para com sua instituição formadora.
Esse episódio atinge todos os estudantes e profissionais formados em escolas médicas públicas. Há uma mácula, indelével, para os que se graduarem em escolas reprovadas em avaliação oficial do MEC. E o que dizer da decepção para muitas gerações que se formaram nessas escolas?
Orgulho-me do meu curso de medicina, ainda no belo prédio do Terreiro de Jesus. Servi 15 anos de minha carreira na Faculdade de Medicina como professor de epidemiologia. Os professores atuais foram, em maioria, colegas e, muitos deles, alunos.
Esses são os motivos que me levam a expor, neste comentário, sentimentos de indignação, repúdio, frustração e vergonha, para além de minhas atribuições como reitor de uma universidade pública de tão rica história e tradição como a UFBA.


NAOMAR DE ALMEIDA FILHO , 55, doutor em epidemiologia, pesquisador do CNPq, professor titular do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA (Universidade Federal da Bahia), é reitor dessa universidade.

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