terça-feira, 29 de abril de 2008

Reforma universitária - importância social

Charles Mady

OESP

Muito tem se discutido e pouco tem sido realizado no tema referente à reforma da universidade para melhor adaptá-la às nossas necessidades sociais e o quanto a atual estrutura inibe - e até impede - que ela sirva de maneira mais adequada à nossa população. Para quem vive dentro dela, e também para ela, fica uma desagradável impressão de que a universidade está isolada de nossa realidade, isolada da maioria que necessita urgentemente de uma atuação eficaz, saindo de baixo da redoma de vidro sob a qual ela vive.

Um grande problema está na visão de produção de profissionais por meio da rápida especialização, pois o assim chamado mercado o exige, conceito esse que se casa perfeitamente com a necessidade de sobrevivência dos recém-egressos dos cursos de graduação e pós-graduação. É uma corrida contra o tempo, abrindo-se mão da qualidade. Esses jovens profissionais serão apenas peças dessa máquina de produção e consumo, em que irão competir de forma selvagem por melhores resultados o resto de sua vida produtiva. Vão viver dentro de um curral intelectual, não dedicando tempo algum a nada além dos limites de seus campos de interesse, sem terem noção do que ocorre ao seu redor, perdendo a crítica sobre quase tudo o que acontece fora de seus limites, desumanizando-se.

Estamos formando técnicos de grande eficiência, esquecendo que as técnicas são um meio para se produzir grandes profissionais, e não um fim em si mesmo. Na medicina isso é devastador.

Num país como o nosso, extremamente necessitado de generalistas, observamos a grande migração de nossos alunos para áreas técnicas, em boa parte descomprometidos com as necessidades sociais. A sociedade, que mantém a universidade pública, não vê o adequado retorno desse empreendimento. Seus alunos irão servir às grandes empresas de saúde, de equipamentos e fabricantes de remédios, que seguramente têm outros interesses que não o bem-estar da população.

Não há a menor dúvida que é fundamental o desenvolvimento de tecnologias de ponta. Quando, porém, observamos que sabemos transplantar o coração de pacientes com doença de Chagas, mas não temos remédios para tratar a causa da moléstia, algo de profundamente errado está ocorrendo. Ou quando observamos os esforços mais que elogiáveis na pesquisa sobre células-tronco, com todos os recursos técnicos e financeiros disponíveis, ocorrerem paralelamente a um mortal surto de dengue, somos obrigados a refletir a respeito. E a perguntar se a universidade não estaria isolada do povo. Fica a impressão de que os desenvolvimentos tecnológicos e científicos são realizados sem se levarem em consideração os interesses da maioria da população.

A nossa parcela de responsabilidade por esse processo é grande. Quando se discutem itens fundamentais de uma reforma universitária, as questões ficam muito mais centradas em estruturas e organogramas do que na reforma de mentalidades de seus componentes. Quantos de nós estão realmente comprometidos com a universidade? Quantos de nós enxergam a universidade como um fim, e não como um meio? Quantos de nós têm na universidade um projeto institucional, e não pessoal? E quanto desses projetos privilegia uma minoria, em detrimento da maioria? Quando discutimos, devemos abordar os problemas maiores com grande objetividade, sem medo, para não corrermos o risco de realizar reformas apenas cosméticas. Devemos perguntar, por exemplo, quanto tempo cada qual de nós dedicou às aulas de graduação e pós-graduação. Devemos perguntar, sem medo, por que aulas em outras cidades e outros Estados, devidamente patrocinadas pela indústria, são tão disputadas, enquanto muitas vezes há enorme dificuldade em agrupar alguns professores para ministrar os cursos oficiais.

Será que a universidade realmente se tornou meio, e não fim? Será que estamos perdendo a paixão pela universidade, que tanto nos deu? Se a paixão pela atividade acadêmica desaparece, desaparece a qualidade, com alto prejuízo para a atividade intelectual. Para piorar, o ensino está sendo marginalizado em benefício das atividades de pesquisa. Hoje em dia há inúmeros índices para avaliar os méritos da produção científica, produção essa que determina a evolução na carreira universitária, gerando como conseqüência uma enormidade de publicações, boa parte delas repetitivas, redundantes, com ampla valorização dos métodos, em detrimento das idéias.

Que índices há para avaliar atividades didáticas? Digo com freqüência que valorizo muito aulas em ambientes acadêmicos, a presença do professor em enfermarias e ambulatórios e discussões com internos e residentes. É o chamado 'currículo oculto', difícil de ser avaliado por qualquer índice. Mas essa é a nossa função mais nobre. Infelizmente, hoje escrevemos muito mais do que ensinamos. Nós nos preocupamos muito com quem vai entrar na universidade, mais do que como esses alunos vão sair. O compromisso maior deverá ser com uma reforma de mentalidades, portanto, cultural, muito mais do que com uma reforma estrutural. Qualquer reforma deverá compatibilizar a pesquisa e a assistência ao ensino, de forma equilibrada. Caso contrário, não terá sentido e estará fadada ao fracasso. E a universidade perderá a oportunidade de atuar de forma profunda na elaboração de novas condutas sociais.

Esses temas merecem longas e árduas discussões. Devemos ter como uma das missões mais importantes atingir conclusões que possam beneficiar a universidade, para que esta possa participar, da melhor forma possível, da realização de um projeto social maior.

Charles Mady, professor associado da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, é diretor da Unidade de Miocardiopatias do InCor-HC-FMUSP

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