quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Pensando à frente

Isaias Raw

Em 1984, com o fechamento de um produtor multinacional, o Brasil viu-se sem soros antipeçonhentos. Nasceu o Programa Nacional de Auto-Suficiência em Imunobiológicos, que promovia a produção por laboratórios oficiais. Em 2004 o Ministério reconheceu ser impossível manter a auto-suficiência sem inovação e, em 2007, que temos de dominar o desenvolvimento tecnológico.

O Butantan antecipou estas metas, produzindo com tecnologia própria 82% das vacinas (150 milhões doses/ano) e 65% de todos os soros! Pensa à frente, antecipando a introdução de novas vacinas e o surfactante que reduzirá a mortalidade no dia do nascimento, hoje responsável por cerca de 50 mil bebês/ano.

O mercado de imunobiológicos brasileiro, com a distribuição gratuita e universal de soros e vacinas, é objeto de interesse comercial, não apenas pelo seu valor, mas por ter os últimos produtores públicos, com qualidade e segurança, a custos compatíveis com orçamento público - um pecado mortal! O Ministério da Saúde (MS), ante a investida das multinacionais, faz um exercício para definir o futuro modelo. Podemos imaginar:

Modelo colônia - Aquele em que a empresa multinacional faz o lobby junto ao MS, às sociedades médicas e até a instituições internacionais. Não se discutem prioridades, custos e perda do poder decisório. Um exemplo disto seria a substituição da vacina difteria-tétano-coqueluche, com 20 anos de sucesso, por uma vacina acelular (que o Butantan produzirá para crianças que têm reações adversas), aumentando, sem benefícios reais, o custo por ano de US$ 1,2 milhão para US$ 63 milhões. Uma nova vacina pertussis, criada pelo Butantan, terá a mesma eficácia e segurança, sem aumento de preço. Promoveram a introdução de uma vacina de rotavírus monovalente, contra a posição de mais de 70% do mundo, que reconhece que a vacina deve ser pentavalente e não pode ser administrada depois de 90 dias de vida, sob risco de obstrução intestinal.

Modelo refrigerante - Importa a vacina a granel, que envasa, não aprende tecnologia, servindo de fachada para contornar a licitação, permanecendo dependente. Um exemplo é a proposta da introdução da vacina 7-valente contra pneumonia. Contém sorotipos não importantes para o Brasil e induz substituições, criando pneumonias resistentes a antibióticos usuais. Custo de US$ 636 milhões, ao qual se somaria o alto custo de antibióticos de “terceira geração”.

Modelo caixa-preta - Adquire a tecnologia fechada, geralmente já obsoleta. Não aprende a desenvolver nem controla os preços para o MS, que determina quanto de royalties o Brasil paga. É um dependente crônico, que voltará sempre a comprar novas tecnologias. Isso hoje representa 40% da chamada produção nacional de vacinas.

Modelo Cingapura - Grandes empresas oferecem investimentos gigantescos para construir fábricas no Brasil que exportarão seus produtos, mas se recusam a investir em desenvolvimento no País. Recentemente ofereceram construir uma fábrica de rotavírus investindo US$ 300 milhões (custo da fábrica do Butantan: US$ 30 milhões). Numa segunda etapa, negociam o uso de prédios e equipamentos pagos pelo poder público, chegando aos países mais pobres a preços que tornam estes países dependentes de recursos filantrópicos permanentes, criando um mercado igualmente permanente. A influenza aviária tornou evidente o perigo dos países que não têm competência para desenvolver e produzir. Obviamente, os produtores obedecerão aos países onde têm suas fábricas instaladas, priorizando, no caso de uma pandemia, as vacinas para suas populações. O restante do mundo que se vire, pois instalar fábricas, independentemente de recursos financeiros e de pessoal treinado, leva seis anos - muito tarde se a pandemia ocorrer. No momento, ministros têm sido aterrorizados para comprar sobras de vacina a US$ 100 por vacinado. Agora são induzidos a começar a vacinar antecipadamente, com uma vacina que não sabemos se corresponderá à pandemia... Usando o estoque adquirido, terão de renová-lo.

Modelo Parceira Público-Privada Nacional - As universidades fazem pesquisas de bancada para publicar. A indústria farmacêutica nacional - com raras exceções - não desenvolve e prefere a caixa-preta! Com todos os incentivos, o panorama mudará pouco na próxima década.

Modelo Parceria Internacional Pública - O Butantan obteve acesso a vacinas de rotavírus e dengue desenvolvidas no Instituto Nacional de Saúde dos EUA e desenvolve a tecnologia de produção destas vacinas. Abrimos o caminho para sete empresas privadas (Índia, China e EUA) que produzirão a vacina pentavalente de rotavírus, adaptada a cada região e que a Fundação Path apóia com mais tecnologia para estabilizá-la na geladeira. Outras parcerias estão em andamento, como a vacina contra pneumonia (Universidade Harvard), que deve custar cerca de US$ 3, ante os US$ 159 da vacina 7-valente.

Modelo Desenvolvimento Nacional - A meta ideal é o País realizar desenvolvimentos próprios de produtos eficazes, seguros e de custo compatível para o Brasil e para países pobres. É o caso da nova vacina de difteria-tétano-coqueluche, que continuará com o preço de US$ 0,15 a dose; da vacina combinada BCG-hepatite B da maternidade, que economiza US$ 5 gastos para testar se a mãe contraiu hepatite B; da vacina contra influenza, que, usando o adjuvante do Butantan, poderá dividir uma dose em quatro, ampliando a vacinação, o que permitirá, sem aumento de custos, vacinar todas as crianças no primeiro dia da escola, evitando a pneumonia, a otite média, que cria surdos, e protegendo indiretamente toda a família.

O governo deve discutir, com cuidado, alterações do atual sistema de auto-suficiência, sob perigo de destruir duas décadas de sucesso.

Isaias Raw é presidente da Fundação Butantan

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