Muito me admira que um deputado federal do peso de Ricardo Tripoli (PSDB-SP) tenha apresentado um projeto de lei que interromperá completamente a produção de vacinas, liquidando um esforço de décadas de controlar doenças que, por serem infecciosas, seriam transmitidas a toda a população. Sem se ter informado com a comunidade científica e com a que produz imunobiológicos e fármacos, passa a ser porta-voz de um fração da população que imagina que todos somos monstros sádicos, matando camundongos e ratos para nossa satisfação, ou dos que consideram a vida de animais de laboratório mais importante que a das crianças ou dos idosos.
Quando pesquisadores se propõem a fazer pesquisas, submetem seu projeto a instituições oficiais de pesquisa, que, sob a proteção do anonimato, julgam a proposta. Neste processo, o número de animais de laboratório adequado para obter resultados estatisticamente significativos é examinado por um comitê da instituição, que evita o uso indiscriminado desses animais e zela pelo tratamento a eles dado. Quando obtêm os resultados da pesquisa, escrevem um artigo detalhando os métodos usados, os resultados e a análise estatística, para documentar a significância. Submetem o artigo a uma revista, que novamente pede a outros cientistas que examinem o artigo proposto e pode recomendar sua publicação, exigir modificações, mais dados, ou simplesmente recusá-lo. Revistas internacionais recusam artigos que usam números inadequados de animais, quer por excesso, quer por serem pequenos, os quais, analisados por rigorosos métodos estatísticos, não permitem conclusões. Os dados e conclusões publicados são confirmados ou contestados por outros pesquisadores de qualquer país.
Sem o uso destes animais a pesquisa morre, pois é limitado o número de ensaios que podem ser feitos sem eles. Animais são usados no controle de vacinas, medicamentos e aditivos de alimentos, para garantir segurança e eficácia. Um dos ensaios importantes é detectar substâncias carcinogênicas e teratogênicas. Há mais de 30 anos, Aims desenvolveu um ensaio rápido e barato, testando carcinogênios em bactérias. Como os carcinogênios naturais ou sintéticos só se tornam ativos no organismo, o teste com bactérias inclui partes de células do fígado de camundongos que ativam o carcinogênio, que atua na bactéria. Muitas pesquisas vêm sendo realizadas para desenvolver ensaios que possam ser realizados sem usar animais vivos, mas a adoção destes testes aguarda uma rigorosa comprovação para que possam ser aceitos pela Organização Mundial da Saúde (OMS). É pouco provável que um teste sem uso de animais tenha a abrangência dos testes in vivo. O teste de Aims dá um resultado preliminar e, se negativo, deve ser confirmado, administrando o novo medicamento ou aditivo para alimentos a grande número de animais, que têm de ser acompanhados por longos meses para verificar se aparecem tumores, o que só pode ser verificado sacrificando-os e examinando seus órgãos. Para não repetir a tragédia da talidomida, medicamentos, produtos químicos e aditivos para alimentos têm de ser administrados a ratos e cobaias acasalados, para detectar abortos e malformações. Com estes testes evitamos crianças sem braços e pernas e que centenas de cães e gatos domésticos venham a morrer por causa de rações contendo pó de fórmica! Só depois destes controles, usando animais, novos medicamentos e vacinas podem ser testados em voluntários para aprovação final.
O deputado deveria ter vindo ao Butantan, onde produzimos 150 milhões de doses de vacinas por ano - 82% das vacinas fabricadas no Brasil. Visitaria um prédio onde, com ar filtrado, temperatura e umidade controladas, em gaiolas limpas, com rações e água de boa qualidade, testamos cada dose de soro ou vacina produzida. Seria informado de que, antes de o produto ser aprovado, passa por testes definidos pela OMS. E que as vacinas são entregues no armazém central do Ministério da Saúde, onde o Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS) tira aleatoriamente um número de frascos e retesta antes de autorizar o seu uso. Todos os anos, todos os bebês nascidos recebem estas vacinas. E sem um controle, não usando métodos seguros e aprovados, poderíamos matar milhões de bebês! Mas S. Exa. e os outros deputados querem garantia de que seus filhos e netos não serão afetados por vacinas que existem para prevenir doenças.
O Butantan está desenvolvendo vacinas para gripe aviária, dengue, amarelão - e precisamos usar animais. Estamos desenvolvendo uma vacina que evita que cães transmitam raiva e leishmaniose à população. Na Índia, milhões de cães sem dono infestam as cidades. Protegidos por costumes e até leis irracionais, não podem ser removidos nem vacinados. O número de casos de mortes por raiva é enorme na Índia e em outros países da Ásia e da África, que buscam no Butantan vacinas e soro anti-rábicos. O Brasil revacinou contra a difteria 19 milhões de pessoas acima de 60 anos, as quais, tendo recebido a vacina quando crianças, não estavam mais protegidos. O Butantan produziu estas vacinas, que, de acordo com a OMS, foram testadas em cobaias. Estados Unidos e Canadá usam o soro antidiftérico do Butantan para tratar quem apanha essa terrível infecção, exigindo testes em cobaias.
Cada brasileiro deveria gastar horas diárias lendo o Diário Oficial para tomar conhecimento das centenas de novas leis - e cumpri-las -, muitas desnecessárias e até inconcebíveis, e consultar um advogado para entender o “ficam revogadas as leis em contrário”, que nem a Câmara identifica! Felizmente, inventamos leis que “não pegam”! Espero que o projeto do deputado Ricardo Tripoli não seja aprovado e, se o for, venha a ser vetado pelo governo.
Isaias Raw, presidente da Fundação Butantan, foi professor na Faculdade de Medicina da USP, de Harvard, do MIT e do City College
segunda-feira, 27 de agosto de 2007
Uso de cobaias, saúde pública e pesquisa
Isaias Raw
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